Por meio de três contratos milionários para recolher, transportar e enterrar o lixo, Santa Maria tem um custo de R$ 25,9 milhões ao ano. O resultado do investimento nem sequer reverte na qualidade do serviço, já que inexiste uma coleta seletiva que favoreça o meio ambiente, ofereça emprego, geração de renda, segurança e formalidade de trabalho e dignidade para quem vive da venda do material reciclável e repercuta em uma cidade mais limpa e sustentável.
Contudo, essa não é uma exclusividade da atual gestão, bem como nunca pareceu ser prioridade de outros governos municipais. Em âmbito nacional, a “crise do lixo” desafia gestores e passa longe do que prevê o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, que foi regulamentado no Brasil em abril deste ano, depois de 12 anos de discussões. O plano tem como meta que em 2024, 14% de todo o lixo produzido no país seja reciclado e que, em 2040, o índice chegue a quase metade de todos os resíduos produzidos.
Atualmente a cidade joga no solo cerca 14,2 mil toneladas de resíduos todo mês. São de 7,2 mil daqui (1,8 mil dos contêineres e 5,4 mil da coleta convencional, segundo as empresas) e outras 7 mil, segundo a prefeitura, que vêm de 39 municípios do Estado, sem qualquer retorno financeiro ao município e sem separação dos resíduos sólidos, que pode ser aproveitados, e do rejeito, sem possibilidade de aproveitamento.
FIM DO PRAZO CONTRATUAL
Ao longo dos anos, a interferência do judiciário foi marcada por multas às empresas, fiscalização da qualidade do trabalho bem como das relações contratuais. Em Santa Maria, os contratos que envolvem os serviços do aterro, e das coletas conteinerização e convencional de lixo se encerram no dia 31 de agosto, e duas licitações têm de ser lançadas (o terceiro contrato é por inexigibilidade de licitação e se caracteriza pela impossibilidade de competição). A prefeitura não tem data definida.
Ao mesmo tempo que o custo do serviço impacta nos cofres públicos, associações de catadores que ainda resistem (são duas em funcionamento) minguam com poucos investimentos, e famílias pagam o preço de trabalhar na informalidade e ou ter seus filhos submetidos ao trabalho infantil.
– Sabemos que a coleta seletiva não está funcionando, mas trabalhamos para mudar isso aos poucos e otimizar o serviços com a próxima licitação. Fizemos mutirões para cadastros de famílias no CadÚnico, porque tem muitas crianças que “não existiam” para o poder público, então, conseguimos umas 30 ou 40 famílias no total.
Foi uma busca com as associações de catadores e dos recicladores também – informa o procurador-geral do município, Guilherme Cortez.
A gestão do lixo e seus efeitos ambientais e sociais também passa pelo Legislativo, quem atua com uma frente parlamentar e já se desdobrou em comissões temáticas que seguem em discussão nos próximos meses.
– Santa Maria tem muito potencial para estabelecer uma boa gestão de resíduos. É inadmissível que em pleno 2022 não tenhamos um sistema de coleta seletiva eficiente. E o poder público poderia investir mais nesse sentido. Só há contêineres praticamente na área central enquanto acúmulos de lixo se formam em outras regiões. O lixo seco que chega junto do orgânico poderia ser melhor aproveitado por associações. Hoje, a separação do lixo também é feita por poucas pessoas que entregam o material reciclável direto aos catadores. Os outros entram em contêineres para separar material. É um trabalho insalubre e um problema de política social, além do impacto ao meio ambiente. O poder público não pode se isentar disso, bem como tem o dever de promover ações de educação ambiental para quebrar esse ciclo – analisa Germano Possani, engenheiro químico e coordenador do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Universidade Franciscana (UFN).
BOA AÇÃO ILUSÓRIA
É por isso que falta educação ambiental e conscientização da população, mas também falta responsabilidade do poder público. Se algumas iniciativas estimulam a separação de materiais – sejam metais, plásticos ou eletrônicos – e se os mesmos não chegam na mão dos recicladores ou no local adequado, como por exemplo em composteiras e hortas, no caso dos orgânicos, o destino final de seus resíduos invalida toda boa (e ilusória!) ação inicial.
Intervenções judiciais e campanhas sem eficácia
Por anos, restos de toda a cidade eram depositados no imenso e conhecido terreno no distrito de Santo Antão – o Lixão da Caturrita. Desde 1982, sem preparo prévio do solo, a área recebia lixo urbano sob a responsabilidade da prefeitura. Centenas de pessoas trabalhavam no local. Por ordem judicial, em 1998, a PRT, uma empresa licitada pelo Executivo municipal, passou a recolher o material. Entre 2005 e 2007, diversas ações judiciais determinaram a retirada dos catadores da área. Sem alternativa de trabalho e renda, muitos deles retornaram. Até que, em março de 2008, o lixo urbano deixou de ser depositado no Lixão da Caturrita.
No mesmo ano, e desde então, as toneladas são destinadas à área de 20 hectares na Estrada Geral da Caturrita, no distrito da Boca do Monte. À época, sob responsabilidade da empresa Revita, hoje denominada Companhia Riograndense de Valorização de Resíduos (CRVR).
INQUÉRITO CIVIL
Em 2013, o Ministério Público, por meio da Promotoria de Justiça Especializada, instaurou um inquérito civil com o propósito de investigar a ausência de coleta seletiva em Santa Maria. De lá para cá, várias reuniões foram realizadas. O MP chegou a solicitar um detalhamento à prefeitura para saber de que forma se dava o recolhimento do lixo, desde a separação até o tratamento dos resíduos orgânicos e recicláveis. Nos anos seguintes, o MP seguiu alertando para a necessidade de se realizar uma nova licitação que contemplasse a questão da coleta seletiva, não descartando a possibilidade de uma ação civil pública que estabelecesse prazos para a elaboração de um termo de referência e de uma licitação, sob pena de multa em caso de descumprimento.
Em setembro de 2016, após processo licitatório, duas empresas venceram a licitação – com validade de dois anos – para realizar as coletas conteineirizada e convencional de resíduos domésticos em Santa Maria. A destinação final do lixo, seja orgânico ou seco, seguiu depositada no mesmo aterro.
A promessa de implantação de uma coleta seletiva na cidade se perde no calendário. Campanhas estamparam o insucesso na sua execução. A última, a “Recicle no Laranja”, lançada em novembro de 2019, fracassou. Nos 50 contêineres na cor laranja espalhados no centro da cidade, lixo orgânico e reciclável se misturavam. A maioria do material se contaminava e perdia valor de mercado, deixando quase impossível separação para os catadores e associações de catadores, que recebiam o material.
Em 31 de agosto deste ano, em pouco mais de um mês, os contratos têm data de vencimento, e novas licitações precisam ser abertas pela administração municipal. Na última semana, o Diário procurou o Ministério Público para verificar como o órgão tem acompanhado o processo. O Cartório de Promotorias de Justiça Especializadas informou que o tema é apreciado somente pela promotora Rosimari Meller Antonello, a qual encontra-se em férias até 31 de julho.
A prefeitura de Santa Maria, por meio da Procuradoria-Geral do Município (PGM), afirmou que o edital está em fase de elaboração e deve ser publicado em agosto.
No Legislativo, comissões e frente parlamentar discutem a questão do lixo
Uma Comissão Especial dos Resíduos Sólidos, criada para acompanhar o processo de licitação para o serviço de coleta e destinação de resíduos sólidos em Santa Maria, foi estruturada no Legislativo municipal no segundo semestre do ano passado. Presidida pelo vereador Givago Ribeiro (PSDB), o grupo partiu de um diagnóstico com os principais problemas relatados pela comunidade.
Encontros e reuniões públicas com participação de especialistas debateram a possibilidade do município ter um Plano Municipal Integrado de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, incluindo a fiscalização de empresas, a adoção de incentivos fiscais, a instituição efetiva da coleta seletiva que assegure a inclusão social de catadores, a cobrança dos municípios que utilizam o aterro e a promoção de campanhas de educação ambiental. A comissão teve atuação de julho de 2021 a março deste ano, salvo o período de recesso parlamentar.
– A ampla necessidade de termos, além da seleção de resíduos, uma forma de alcançar material às pessoas que hoje dependem desses resíduos para obtenção de renda foi uma demanda que apareceu muitas vezes para a comissão. Isso envolve os novos contratos, que, em dezembro, ainda não estavam concluídos. A comissão finalizou os trabalhos com um parecer não conclusivo, porque os termos de referência (do contrato) não estavam devidamente prontos. Então, o apontamento principal refere-se à necessidade de contemplar algo exclusivo para a questão da coleta seletiva e à destinação desses materiais para fins de geração da renda – disse Givago.
Já a Comissão Permanente de Saúde e Meio Ambiente (CSMA), presidida pelo vereador Manoel Badke (União Brasil), debruçou-se sobre a questão do lixo, principalmente no que diz respeito aos descartes irregulares de resíduos. O lixo nas proximidades ou no próprio curso do Arroio Cadena tem o problema mais agravado.
– São toneladas de sujeira que a prefeitura tira do Cadena. Isso prejudica a qualidade da água e promove o desassoreamento. Tivemos várias agendas com a Defesa Civil, com a Secretária de Meio Ambiente e de Infraestrutura e Serviços. Propomos colocar cestos coletores em alguns pontos do arroio e investir em educação ambiental. Particularmente, sempre considerei a questão do lixo uma questão de saúde pública e sempre integrei as comissões de saúde por esse motivo. Inclusive, é minha a lei sobre a promoção de ações preventivas e educativas quanto à coleta de lixo reciclável no município. Foi sancionada em 2008, na época do Valdeci, (prefeito Valdeci Oliveira) – lembra Badke.
Dentro da CSMA, uma outra subcomissão foi criada. O objetivo é acompanhar o Executivo municipal na elaboração dos termos de referência da nova licitação. Um dos pontos de maior destaque é prever uma organização administrativa e jurídica para associações de catadores e eventuais convênios ou cooperativas.
FRENTE PARLAMENTAR
Também na Câmara de Vereadores há a Frente Parlamentar do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, formada no ano passado. Um dos vereadores que integra a frente a partir deste ano é Ricardo Blattes (PT).
– O saneamento (abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e gestão de resíduos) é de responsabilidade exclusiva municipal. Não depende de outras esferas. É inadmissível que em Santa Maria ainda não tenhamos coleta seletiva. Fui o relator da Comissão Especial dos Resíduos Sólidos, que identificou que os contratos de coleta, transporte e destino dos resíduos estavam vencendo sem nenhuma perspectiva de implementação da coleta seletiva. Gastamos muito e gastamos mal. A partir daí apresentei e aprovei emendas nas leis orçamentárias e este ano busco articular através da Frente Parlamentar, em conjunto com instituições de ensino e sociedade civil, condições para que possamos implementar a coleta seletiva, em defesa do meio ambiente, e sobretudo que dê dignidade ao trabalho de centenas de catadores e catadoras – defende Blattes.
Nova licitação prevê mapeamento inédito e otimização do serviço, segundo a prefeitura
Com fim dos prazos contratuais em 31 de agosto de 2022, a prefeitura de Santa Maria tem a obrigação legal de lançar um novo processo licitatório para o recolhimento e destinação do lixo na cidade. Segundo o procurador-geral do município, Guilherme Cortez, o edital está sendo confeccionado e deve ser publicado nos próximos dias, ainda sem data definida. Antes de lançar a licitação, e com apoio da Superintendência de Monitoramento e Fiscalização dos Serviços de Água e Esgoto, um mapeamento detalhado da situação do descarte de resíduos sólidos de cada um dos 41 bairros está sendo feito. O trabalho é encampado pelo engenheiro civil Ivan Nazaroff. As rotas dos caminhões de coletas, os horários e o volume de carga também integram o estudo. A licitação também irá prever a troca de todos os cerca de 600 contêineres da cidade.– Nós precisamos colocar de pé uma coleta seletiva que funcione, e não adianta querer colocar isso em toda a cidade, só para dizer que colocamos e ela não funcionar. Então, a ideia é que a gente comece em determinados locais, uma espécie de projeto- piloto, com uma estrutura que dê conta de coletar esse material e que destine para as associações. Já temos também uma equipe da Secretaria de Infraestrutura e Serviços e da Secretaria de Meio Ambiente que irão auxiliar na licença ambiental das associações – adianta Cortez.Embora haja poucas informações sobre o que prevê a nova licitação, a prefeitura afirma que irá otimizar os serviços. Também está no horizonte, a possibilidade de criar uma superintendência específica para a questão do lixo urbano e planos de gestão de resíduos para grandes geradores. Essas ações serão em um segundo momento.– Temos consciência e estamos estudando, não estamos aqui enrolando. O desejo é que pudéssemos avançar, mas temos limitações e regularizações, que vamos poder discutir depois da licitação – pontua o procurador-geral.
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Por Pâmela Rubin Matge
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